Nasci numa família com excelentes condições financeiras. Até completar 18 meses de idade, nós viajávamos, jantávamos fora, andávamos em bons carros etc. Até que um acidente levou minha mãe e fez o nosso mundo ruir. Meu pai, um guerreiro incansável, largou o emprego pra poder cuidar dos 3 filhos pequenos e tentou empreender, mas as coisas não deram certo. Depois dos meus 18 meses, a vida foi uma enxurrada de provações. Com uns 14, 15 anos, conheci uma porção de pessoas com histórias similares. E todas elas tinham dado a volta por cima através de muito estudo e trabalho duro. Aquilo me marcou muito. E eu desejei ter a mesma coisa pra mim.
Depois, com 19 anos, eu vivi em diversas cidades do interior da Bahia fazendo um trabalho voluntário por 2 anos. E lá eu conheci gente com uma história muito mais complexa que a minha, com a diferença de que eles não tinham acesso aos bons exemplos que eu tive. Aquilo não estava certo!
Quatro anos depois tive o privilégio de ser voluntário da Junior Achievement. Um garoto de 23 anos compartilhando experiências com adolescentes. E então eu percebi que não precisava ser um executivo de sucesso para ajudar outra pessoas.
Por fim, em dezembro de 2012 eu estava buscando candidatos para uma vaga que eu tinha em aberto na empresa em que trabalhava. Um colega de trabalho sugeriu entrevistar “a moça do carrinho”, uma jovem que todos os dias passava no nosso andar com um carrinho vendendo balas, salgados e bebidas. Ela já tinha chamado nossa atenção por ser muito simpática e ter ótima memória (ela sabia nossos nomes, o que gostávamos de comprar e até o nome do meu filho, que ela viu numa foto no meu papel de parede do PC).
Pedi o currículo dela. Uma xerox de um documento mal-feito e mal-escrito, sem nenhum conteúdo. Ela era uma jovem de 18 anos, sem ensino médio completo e sem experiência de trabalho. A vaga que eu tinha era uma vaga simples, mas pra quem apenas empurrava um carrinho de comida, era muito complexa pra ela. No entanto, eu estava encantado com o jeito dela e decidi fazer a entrevista. No fim do currículo, ela escreveu que só queria uma oportunidade, que aprendia rápido e queria crescer. O endereço dela era de uma favela. Fiquei tão intrigado que joguei no Google Maps (stalker). Era uma favela das brabas!
Minha primeira pergunta foi sobre os estudos. Perguntei porque ela tinha largado. Ela disse que passou um período difícil e não deu pra estudar. Mas que já tinha voltado e que sabia que precisava terminar. Nas palavras dela, que eu nunca esqueci:
– Sr. Fernando (Senhor???), que chance uma preta, pobre e sem educação tem nessa vida? Se eu não voltasse a estudar, ia passar a vida num carrinho.
Eu me lembro de ter dado um grande, um enorme sorriso. Perguntei se ela sabia mexer no computador.
– Eu não sei, mas eu aprendo. Eu não sabia que o nome do seu filho era Lucca, mas eu aprendi. Eu não sabia que o FULANO (citou uma pessoa do meu andar) gostava de salada de frutas. Mas eu aprendi. Toda vez que eu chegava com o meu carrinho, eu já vinha trazer a salada de frutas dele. Eu aprendo.
– Em quanto tempo você aprende?
– Rápido!
– O que é rápido? (eu esperava algo tipo, 3, 6 meses)
– Olha, não vai ser em 24 horas, mas quase isso!
Outro sorriso.
Expliquei pra ela que independente do que acontecesse naquela vaga, ela precisaria voltar pra casa, aprender a mexer no computador, continuar os estudos e etc. Eu disse que na internet ela conseguiria aprender inglês e até informática sozinha, e que isso iria ajudá-la para qualquer coisa na vida, e ajudá-la a mudar a sua situação. Ela me disse que sabia. E aí ela me deu a grande lição do dia:
– Minha mãe teve uma vida muito pobre, muito sofrida. Mas ela é minha mãe, e não eu. Eu sou minhas escolhas! Eu posso mudar isso, eu posso quebrar esse ciclo. Por isso estou estudando e buscando uma oportunidade.
Quando eu ouvi isso da boca de uma menina de 18 anos, humilde, simples, totalmente despreparada, mas totalmente consciente da sua própria situação, eu fiquei em choque. Que exemplo, e que lição de vida!
Ela continuou falando e então me contou sua conversa com uma amiga sobre a entrevista que ia ter comigo:
– Fulana, você imagina, ontem eu estava lá servindo eles, amanhã eu posso ser um deles!!!!
Eu confesso que nessa hora fiquei até emocionado. Ser um de nós??? O que ela achava que “nós” éramos? Sua imensa e infinita humildade me emocionaram. Eu interrompi e falei que ela não estava servindo ninguem, ela estava trabalhando, assim como nós. Ao que ela repetiu a mesma coisa “imagina se eu fosse um deles!!!”. Pra ela que passava com um carrinho de comida, o nosso trabalho (que muita gente só reclama) era o sonho da sua vida.
Aí eu comecei a falar da vaga em si. Eu falei o nome da vaga (assistente de negócios). Quando ela ouviu isso, parecia que eu tinha falado “presidente da empresa”. O sorriso dela ia de orelha a orelha. Eu perguntei porque, e ela me disse que tinha achado o nome lindo demais, e muito chique.
Eu perguntei dos seus planos. Estudar, trabalhar, entrar numa faculdade, fazer uma pós. Ela me disse que tudo que precisava era uma oportunidade. Eu questionei se ela sabia fazer várias coisas. Ela respondeu de bate-pronto “não” pra todas. “Mas eu aprendo!”, também de bate-pronto.
Eu ja estava totalmente admirado. Ao encerrar a entrevista, ela virou pra mim e falou:
– Sr. Fernando, independente do que acontecer, eu vou seguir todos os seus conselhos. Eu vou aprender a mexer no computador, eu vou estudar e vou aprender inglês, muito obrigado.
O final da história é triste. A empresa tinha uma norma de não contratar pessoas sem o Ensino Médio completo. Eu tentei trazê-la como menor aprendiz, mas não consegui. Lembro de ainda ouvir “Isso aqui não é uma ONG”. Bem, de fato, não era mesmo.
O Projeto Joule nasceu quando eu tinha 18 meses. A ideia foi adubada através da minha experiência voluntária com nosso povo sofrido no nordeste. Cresceu com a Junior Achievement e tomou corpo em experiências informais e pessoais de mentoria com outros jovens e amigos que em algum momento confiaram em mim para buscar um conselho. A ideia implodiu dentro de mim quando encontrei essa menina “preta, pobre e sem educação” e não pude fazer nada por ela.
Hoje, finalmente, a ideia saiu do papel!
Que através desse projeto possamos abrir muitas portas para pessoas como minha amiga da história acima e como muita gente no nosso país, que só precisa de uma “mãozinha”.
Vem com a gente! 🙂