Por Fernando Schneider, fundador do Projeto Joule
Nos últimos dois anos eu saí da cama todos os dias para viver o maior sonho da minha vida profissional.
Confesso que nem tudo foi como um sonho bom. O cansaço foi enorme, em todas as suas diferentes dimensões. O cansaço físico, pelas horas intermináveis de estudos, a carga horária puxada, trabalhos, reuniões etc. O cansaço mental, por ter de quebrar a cabeça com problemas complexos, ter de processar tudo em dobro por conta do idioma, por ter a constante pressão de deadlines e prazos para cumprir, por viver a vida de estudante de tempo integral sem uma divisão certa de tempo para vida pessoal e vida acadêmica. Por fim, o cansaço emocional, de longe o mais desgastante de todos. Foi duro não conseguir ser eu mesmo num idioma diferente, passar por incontáveis momentos de auto-estima negativa e ser rejeitado dezenas de vezes em situações diversas. Foi duro ter minha mediocridade escancarada quando comparada ao talento de vários dos meus colegas. Foi desafiador estar num ambiente onde praticamente todo mundo tinha mais ou melhor do que eu: mais/melhor educação, mais/melhores experiências, mais/melhores oportunidades, mais dinheiro, mais facilidade de aprender, melhores notas etc. E eu não vejo nenhum orgulho em me sentir assim, portanto esse não é um discurso de vitimização. O cansaço e essas experiências já evidenciam que nem tudo foram flores. Nem todas as matérias e professores foram excepcionais. Nem todas as pessoas que eu conheci foram excepcionais. Nem todas as experiências ou impressões que eu tive foram positivas. Todavia, eu não quero me alongar sobre as inúmeras dificuldades em viver o meu maior sonho, hoje eu quero focar no que tudo isso representa.
Concluir o que estou concluindo era um objetivo tão importante que quando olho pra dentro de mim mesmo e penso no futuro, eu sinto um vazio gigantesco, deixado pela realização do meu maior sonho profissional. É como se as coisas tivessem perdido um pouco a graça. É óbvio que esse é um sentimento totalmente equivocado, a vida continua e na verdade começa a ficar séria de verdade daqui pra frente, mas de fato eu me sinto vazio a cada vez que reflito sobre o tema, dada a proporção e dimensão que tudo isso significava para mim.
Acho que para a grande maioria dos meus colegas esse tipo de sentimento não deve fazer muito sentido. Para muitos deles, concluir o MBA é só mais um passo das suas já bem-sucedidas e ricas histórias. Concluir o MBA foi como concluir a faculdade, o colegial, conseguir o primeiro emprego, ou conseguir o último emprego: um passo necessário no meio do caminho. Talvez para a maioria das pessoas que está lendo esse texto, o MBA também é justamente isso, apenas uma etapa que alguns escolhem enfrentar. Definitivamente, não é assim que eu me sinto.
Quando eu recebi a ligação de um representante de Tuck me dando a notícia de que eu tinha sido aprovado e ainda ganhado uma bolsa, eu larguei o telefone tremendo e chorei. Sim, um marmanjo de 28 anos chorando no telefone por que tinha sido aprovado para fazer um MBA. As razões desse descontrole emocional ao receber a aprovação (e também do atual vazio, e do meu sentimento em relação ao fim do meu sonho) se encontram nos anos anteriores ao dia da ligação.
Um conjunto de eventos inesperados e avassaladores tornou a vida da minha família um tanto complicada. Eventos que passaram pela tragédia da perda da minha mãe quando eu ainda era um bebê à total instabilidade financeira na nossa casa durante todo o resto da minha infância e adolescência. Na verdade, chamar nossa situação de ?instabilidade? seria um elogio e uma visão otimista.
Sem querer dramatizar, acho que alguns exemplos ajudam a ilustrar as sensações que estou tentando descrever. Por exemplo, foram diversas as vezes em que eu vi um representante da companhia de água ou luz ir cortar o abastecimento da nossa casa por falta de pagamento. Eu achava o máximo ficar à luz de velas ou tomar banho de caneca. Até que cresci um pouco e a partir daí foram incontáveis as vezes em que eu mesmo religuei a luz e a água, tão logo o técnico dessas empresas deixava minha casa após o corte.
Eu tive um video-game, usado, doado, que já era ultrapassado quando chegou na minha mão. Meu pai conseguiu me dar minha primeira bicicleta quando eu fiz 14 anos (e ela foi roubada menos de 1 mês depois… pobre e azarado). Deixei de ir em vários passeios da escola (incluindo formatura) porque não tinha dinheiro, as vezes nem para o lanche. Deixei de ir à escola algumas vezes por não ter dinheiro para o ônibus. Meus livros eram usados e doados pela escola (quase todos os meus livros eram ?Edição do Professor?, eu tinha que apagar as respostas antes de usar). Meu pai não pode me colocar numa escola de inglês (que eu tive que aprender com mais de 20 anos). Não pode me mandar para estudar fora (que eu fiz com mais de 20 anos). Não pode me colocar para aprender piano, violão, Kumon, judô, etc (que eu nunca aprendi).
Então eu fui trabalhar como voluntário da minha igreja em cidades da Bahia. E isso me ajudou a perceber o quão privilegiado eu era. Por ter um video-game (mesmo que velho), brinquedos, uma bicicleta (mesmo que por 1 mês), luz e água (mesmo que religadas por mim), livros (mesmo que usados). Mas mesmo assim, eu sabia que podia e tinha que mudar minha situação.
E foi aí que eu conheci o tal MBA. Eu tive a oportunidade de ouvir diferentes pessoas com situações parecidas com a minha, que tinham ido para os EUA fazer um MBA. Quando eu ouvi suas histórias, essas pessoas já eram lideres bem-sucedidos, nas empresas e na sociedade. Os exemplos de pessoas assim eram tantos e o MBA era algo tão comum entre todos eles, que na minha cabeça o MBA se tornou a chave para sair da pobreza. Eu não sabia o que significava o ?M?, nem o ?B?, nem o ?A?. Mas ao conhecer essas pessoas, eu sabia que o MBA seria a maneira certa para mudar minha situação. E foi!
Por conta desses exemplos e dessas pessoas, eu mergulhei nos estudos e passei a me dedicar na minha educação. Eu aprendi o que era o ?M?, o ?B? e o ?A?. Aprendi o que precisava fazer para poder ser aceito. Aprendi que custava caro. Aprendi onde isso poderia me levar. E a partir daí, todas as minhas metas e decisões giraram em torno do sonho de fazer um MBA nos EUA.
Essas metas e decisões passaram por eventos que começaram com 14 anos, quando eu decidi tentar entrar numa escola técnica, cujo vestibular era acirradíssimo. Essa decisão não só me ajudou na carreira, mas também me afastou de algumas amizades da época que estavam optando por caminhos questionáveis, incluindo drogas e outras coisas. Essas decisões passaram por optar por não usar meu salário para almoçar, mas passar o dia com fome e usar o dinheiro para pagar um professor particular de inglês e um cursinho para tentar entrar numa universidade federal (mesmo essa decisão me levando embora cerca de 8kg em alguns meses). Essas decisões passaram por optar por mudar de emprego e ir ganhar menos da metade do meu antigo salário, mas numa empresa multinacional onde eu poderia aprender inglês e ter experiências internacionais (ponto importante pro MBA). Elas também passaram por optar por sair desse novo trabalho e ir trabalhar na minha empresa dos sonhos, para ganhar menos ainda, mas num lugar que iria dar a credibilidade que eu achava que iria precisar no futuro para aplicar pro MBA. Elas também passaram pela decisão de largar esse emprego na empresa dos meus sonhos para ir para uma empresa muito menor, mas para desenvolver liderança, que eu também achava que iria precisar para ser aceito no MBA. Elas passaram por um plano de austeridade e controle rígido do meu orçamento pessoal, juntando dinheiro desde o meu primeiro salário para poder bancar o meu sonho. Elas passaram pela decisão de ter carros muito mais simples do que eu poderia bancar, viver em lugares muito mais simples do que eu poderia viver, fazer muito menos coisas que eu poderia fazer, em troca de economias que iriam me ajudar a custear o sonho. Enfim, todas as minhas decisões de vida e carreira após os meus 14, 15 anos, foram direcionadas para atingir o antigo sonho de fazer um MBA e deixar de ser pobre. Bem, eu felizmente deixei de ser pobre (um pouco menos pobre) antes de fazer o MBA, mas os motivos para fazer já eram outros.
Chegou então a hora de aplicar pro MBA. Gastei horas incontáveis estudando. Sacrifiquei todos os meus fins-de-semana por meses. Usei minhas férias para estudar. Usei todas as minhas noites após o trabalho para estudar, por meses. Gastei uma grana suada e pesada com professores e consultores para me ajudar, mais uma grana interminável para aplicar para várias escolas. Refiz o teste requerido pelas escolas 4 vezes, até chegar numa nota minimamente decente (mas nem perto de ser excelente), torrando mais e mais dinheiro. Submeti os applications e aguardei.
As notícias começaram a chegar? fui recusado em todas as escolas que apliquei!!! O desespero bateu e a possibilidade de não concretizar meu sonho me deixaram profundamente chateado, nervoso, infeliz. Então eu reparei que nada na minha vida até aquele momento tinha sido fácil, nada tinha sido da primeira vez, nada tinha vindo sem um esforço extra. Por mais um ano estudei, estudei, estudei, gastei, gastei, gastei. Apliquei novamente. As notícias começaram a chegar? fui recusado em todas as escolas que apliquei… até que recebi a ligação do representante de Tuck! E talvez agora dê pra entender porque caí no choro.
O MBA representa para mim a materialização de mais de 15 anos de esforço, metas, dedicação, alocação de recursos. O MBA foi a faísca que me fez querer mudar de vida e que de fato fez com que eu mudasse. O MBA foi minha bússola. O MBA para mim é muito mais do que diploma. Foi um plano de vida. Foi o que me tirou da cama de manhã por anos seguidos. Concluir esse sonho para mim é muito mais do que me formar um mestre em administração. É um símbolo pra mim de todas as minhas decisões, sacrifícios, erros e acertos nos últimos 15, 16 anos. É uma lembrança dos tempos muito difíceis até o dia em que minha visão se abriu e uma lembrança dos dias cheios de esperança e muito trabalho depois disso. É a conquista profissional da qual mais me orgulho, não pelo título, mas por tudo que está por trás do caminho até o dia de hoje. O MBA em si, como disse, foi feito de flores e espinhos. Mas isso não importa, porque o MBA para mim não se resume aos dois últimos anos, mas sim aos últimos 17, 18, 20 anos.
Eu olho para trás e não consigo não agradecer pela minha família, começando por meu pai, um guerreiro sofrido. Se por um lado perdi minha mãe, ganhei outras duas, que foram minhas irmãs. Minha esposa, que desde que casamos nunca conseguiu me ter 100% em casa e sempre teve que me dividir com estudos (nem sei ao certo se ela me quer 100% em casa). Além da minha família, sempre penso em algumas pessoas que fizeram toda a diferença pra mim. Desde os grandes exemplos que me inspiraram lá atrás, até a senhorinha que alugava o quarto pra mim e que fazia mingau pra mim todos os dias de manhã e a noite, nos tempos em que eu não almoçava para juntar dinheiro. Penso nas pessoas, ex-chefes, amigos e outros que me abriram as portas que eu precisava e me ajudaram com os recursos que eu precisava. Penso em Deus, que me poupou a vida (literalmente), me ajudou e me inspirou sempre que eu precisei.
E agora, o sonho acabou. Por mais de 15 anos eu levantei da cama para realizar um sonho. Nos últimos 2 anos eu levantei da cama para viver o sonho. E agora, confesso que os sentimentos de saudosismo e alegria, o vazio e a realização, se misturam tão fortemente que ainda não consegui definir o que vai me tirar da cama nos próximos anos. Mas, para falar a verdade, isso não importa agora. Agora é hora de celebrar! ?